domingo, 6 de dezembro de 2015

Gosto de Zona Cinzenta

Descobri que há noites na vida da gente que nunca passam. Não passam com o raiar do dia. Tamanha luz solar não tem alcance diante das fendas, dos vazios, das cesuras, do grande profundo das coisas que me habitam. Às vezes esse grande profundo se desloca e sobe até me alcançar. Seu gosto amargo é conhecido, mas não indigesto. É preciso remoê-lo, pois o gosto da noite, com pitadas da luz do dia que entram pela boca aberta, formam uma massa densa, flutuante, uma mistura de sombras e luzes em minha garganta. Esse refluxo é algo fosco, fluido, que me queima com sua mistura cinzenta.
Primo Levi tem algo a nos dizer sobre isso: "Estou à mesa com a família, com os amigos [...] um ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina [...] tudo se desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um na turvo e cinzento" [A trégua].
Primo Levi foi um dos primeiros homens que conheci que foi servido à mesa pela sua própria zona cinzenta. Curiosamente, esse recheio não vem de fora, mas de dentro. É um alimento necessário, uma reserva do ser para aqueles que precisam de energia para se manter vivos. Primo mastiga seu próprio caos com dentes afiados de dor e pensamento. Não se trata de nenhum ritual de auto-canibalismo, mas da necessidade de remoer, mastigar, dentar, triturar, digerir a própria carne do sofrimento.  

sábado, 22 de junho de 2013

"Pensar em outros mundos para transformar este..."




"Para que tentar?"

O conceito e/ou a noção de trabalho é o elemento central de compreensão das relações humanas e das contradições sociais, logo, num mundo onde cada vez mais o trabalho é selvagem, quando não inexistente, os horizontes acabam se fechando diante da insatisfação do emprego, da insólita sensação de inutilidade ou da solidão do desemprego, bem como da ausência de perspectivas e de superações. Trata-se de uma atmosfera turva e cinzenta, que lembra algo que descreveu um dos personagens de Shakespeare, no drama A tempestade: “O inferno está vazio, todos os demônios estão soltos”. “O inferno não existe, todos os demônios estão aqui”, transformando a vida na sociedade humana num inferno, numa guerra econômica. O mundo pós 1970 é o mundo da guerra econômica, do horror econômico, provocado pela ferocidade e competitividade dos poucos empregos, de um lado, e pelo desemprego em massa e o fantasma da inutilidade, de outro, conforme aponta Christophe Dejours, A banalização da injustiça social (1999) e Richard Sennet, “O talento e o fantasma da inutilidade”, in: A cultura do capitalismo (2006). Tomo, portanto, como ponto de partida a pergunta de um dos personagens do filme "Tempos Modernos", de Chaplin, que se questiona "Para que tentar" depois de tantas derrotas no mundo do trabalho. Pensando nisso, vou discutir dois aspectos particulares, que estão entrelaçados, dentro do mundo do trabalho no modo de produção capitalista atual: o sofrimento e a falta de mobilização social.
O mundo do trabalho foi e continua sendo uma questão difícil, complexa, mas necessária, sobretudo porque hoje os homens, digo, aqueles que vivem a selvageria do emprego e o desprezo do desemprego continuam tolerando o sofrimento, a injustiça, a dor sem se mobilizar. A despeito dos últimos processos de mobilização que tem surgido em todo Brasil e no mundo, que aponta para uma aurora de novos acontecimentos e reações, uma mobilização urgente e ausente é contra o sofrimento no mundo do trabalho. Na verdade, cabe a pergunta: de onde veio esta tolerância que desenvolvemos em relação ao sofrimento? Qual é o fundamento da tolerância social e falta de mobilização por parte dos homens em relação às péssimas condições de emprego ou a ausência dele? A crise do emprego tem sido vista como um fenômeno sistêmico, econômico, sobre o qual não se pode fazer nada. O sofrimento no mundo do trabalho está dentro dos padrões aceitáveis de normalidade, como se o liberalismo econômico dos últimos dias refratasse a normatividade que é cara às formas totalitárias de existência. Afinal, o comportamento social de todos em relação à exploração do trabalho ou a gravidade do desemprego não geram mobilização, mas rejeição do quadro de sofrimento. Pior, considera-se que este quadro faz parte de um sistema social instituído e que a cada um de nós cabe seguirmos as regras, colaborarmos com ela, afinal, só o “trabalho liberta” – esta frase grotesca estava numa placa na entrada de Auschwitz. Responsabilidade excessiva e zelo com a própria causa é tanto um engodo quanto ingredientes que o sistema nazista utilizou num caldo que envenenou e exterminou milhares de pessoas.
A energia que produz a mobilização não é a esperança da felicidade, mas a cólera contra o sofrimento e a injustiça social considerados intoleráveis. A ação coletiva seria mais reação do que ação, reação contra o intolerável. Nesse caso, haveria dois níveis de mobilização. Primeiro, uma mobilização subjetiva individual, que implica a ação em busca de um desejo (paixão); e uma mobilização coletiva, que implica uma reação ao sofrimento e a injustiça social, que conduz ao engajamento.
É a falta de reações coletivas de mobilização que possibilita o aumento progressivo do desemprego ou a selvageria do trabalho, quando ele existe, bem como dos estragos psicológicos e sociais da sociedade contemporânea. E não somente isso, o máximo que alcançamos são reações adversas, como atos de violência, de vingança, ou então, de prostração, abatimento, depressão. Isso não é mobilização, não é ação, é uma reação contra a violência.
Mas não deixa de ser um começo. A defesa é a mola de engajamento. É preciso reagir, se defender, tudo isso para me engajar. Engajar numa luta não contra a injustiça ou o mal, mas contra a banalização do mal. Contra a capacidade de atenuar o sofrimento, desdramatizá-lo, o que nos torna co-autores da causa do sofrimento. 
O denominador comum de todas as pessoas é o trabalho e somente a partir do trabalho, talvez, possamos compreender como a banalização do mal ou da injustiça social se tornou possível.  Por banalizar o mal entenda a incapacidade de julgar e a vontade de agir coletivamente contra a injustiça, isto é, um descrédito em relação ao sofrimento no mundo do trabalho, portanto, na vida em sociedade.
Enfim, diante de uma sociedade permeada pela inutilidade e pela banalização do mal, não havendo uma solução a curto prazo, só nos resta uma construção humana bastante lenta, um processo que implica responsabilidades. Lembrando que nosso poder e controle sobre o processo pode ser aumentado pelo conhecimento de seu funcionamento. Na impossibilidade de contribuir para a ação, a análise pode contribuir pelo menos para compreensão. E como diria Raymond Williams, socialista e crítico literário inglês, aquilo que compreendemos, podemos fazer. 
Diante da insólita passividade coletiva frente ao mundo do trabalho, diante desse quadro onde vigora a inutilidade, o problema não é a falta de uma utopia social alternativa. O problema é o desenvolvimento de uma tolerância à injustiça: zelo excessivo, alienação social, medo, inúmeras estratégias defensivas para evitar o choque, processos de negação. Enfim, tudo isso, banaliza o mal, porque não lhe dá a atenção e negação que lhe é devida, antes se conforma com ele. A principal fonte de sofrimento no mundo é o trabalho, a falta dele, e a garantia de felicidade que lhe é inerente. Então, por que virar as costas para este problema estrutural? Sem reconhecimento do sofrimento não há mobilização e um processo de ação. E ação é sempre uma tríade: práxis (ação); atividade (trabalho) e paixão (sofrimento), porque suportar um sofrimento é experimentar a compaixão. Todos estes elementos juntos são resultado da capacidade de pensar e agir.
A banalidade do mal não consiste em uma psicopatologia, mas na normalidade, ainda que esta normalidade seja sinistra e funesta. O único caminho para nos ocuparmos com estes problemas é compreendendo, ativando nossa capacidade de pensar sobre eles, reagindo, nos engajando e, portanto, nos mobilizando em direção a uma ação coletiva. Contudo, como disse Isabel Loureiro, uma vida talvez não seja o bastante para ver as transformações sociais que estão sendo criadas pelas gerações de hoje, como os movimentos anti-capitalistas, eco-socialistas, os movimentos de Ocupação etc. Na verdade, se não há uma solução a curto prazo, talvez aquilo que o socialista grego Nikos Kazantzakis dizia pode ser um conselho oportuno: não te dignes a perguntar se haverá vitória ou derrota, luta.



sábado, 15 de junho de 2013

Caos

Conheci o ódio e o abandono no mesmo dia. Eles vieram de lados distintos, por vias aparentemente desconhecidas. Mas, na verdade, o abandono vem sempre de dentro e o ódio de fora. A questão é que em ambos os casos, o perigo é eminente. Mas quem corre perigo? Quase sempre é o eu, aquele que foi construído em parceria com o outro. Não se trata de um eu puro, uno, homogêneo, mas de um eu com muitas faces, feições, diferentes vozes e representações. Porque para ser eu é preciso estar com o outro, relacionar-se, diferenciar-se, construir uma aliança de amor, que chamo de ética. É uma dádiva, que se transmuta em ameaça certas vezes, afinal, corre-se sempre o risco do outro desaparecer. Não o outro que se transfigura em eu, mas o outro que vive do lado de fora, com quem se estabelece uma parceria, um holding
Primo Levi chamou de Lourenço aquele que lhe restituiu a humanidade no campo de extermínio. Os gestos, as ações, a solidariedade laica daquele homem compromissado consigo mesmo e com o outro, despertou dentro do Primo o homem esmagado pela violência, pela dor, pelo caos "turvo e cinzento" do "Lager". 
Mas quem chega pode sempre partir. E assim acontecia com Lourenço, que se despedia do Primo todos os dias, assim como o sol faz à terra em milênios, embora sempre dando provas de voltar na próxima manhã. Mas quando a "roupa da noite encobre tudo" , e uma "vaga lua" (Cecília Meirelles) ilumina nossa escuridão, parece difícil acreditar que um soberano sol voltará a brilhar outra vez. Mas   Lourenço voltava e, assim como o sol, trazia luz àqueles que viam sombras. Sombras que se formam em meio à solidão, à despedida, ao entardecer. E nesta transição entre o dia e a noite, entre a presença e a ausência, mora o desespero, o caos.
Este "instante de terror" me visita quase sempre, pois a solidão é um sentimento constante. Mesmo em dias mais longos, com noites mais curtas, sinto sua presença, o sentimento da despedida, da experiência de que Lourenço vai me deixar mais uma vez, levando com ele toda minha humanidade. Esta é uma emoção verdadeira,  sentida com intensidade, embora a cada dia menos completa, total. Digo isso porque a solidão já não abrange tudo. Descubro a cada despedida, nos momentos em que tudo se torna caos, que continuo ainda vivo, mesmo em meio a uma dor terrível. Na verdade, tenho experimentado um despontar, um brilho de um rosto sorrindo mesmo em meio à angústia, à densidade da solidão. É indescritível a sensação de estar vivo, mesmo sabendo que o campo de extermínio pode ressoar a qualquer momento, mesmo nas situações mais livres de tensão e sofrimento. Existe um caos, assim como existe a vida, o eu e um outro. 
A última vez que Lourenço me deixou pensei que não iria sobreviver, pois fui transportado de novo para o "Lager", para sua verdade. Mas devo dizer que reencontrei meu atual caminho. Precisei me guiar pelas pistas internas que Lourenço plantou em minha alma antes de sua partida. Segui por elas, percebendo, aliás, que o que pareciam ser suas veredas, eram, na verdade, meus itinerários de busca e de luta pela vida, num passado e ainda no presente. Lourenço, na verdade, forneceu uma luz para me guiar por estas estradas da noite e das sombras, até o raiar do dia. Quando ele voltar terei muitas histórias para contar desta minha odisseia. Falarei destes dias, deste caos que se instalou depois da sua partida. Mas falarei também da vida, das descobertas de um eu e de um outro, que certas vezes me abandona, sem nunca me deixar.    





quinta-feira, 14 de março de 2013

Primo Levi

No dia que terminei as postagens da minha crônica, "Campo de extermínio", tive a ventura de conhecer o Primo Levi, que viveu concretamente o campo de extermínio. Seu relato no livro "É isso um homem?", que pretendo comentar, mais detidamente, em algumas postagens nos próximos dias, é uma fonte brutalmente enriquecida de sentimentos e ideias sobre sobreviver a processos de aniquilamento e, ao mesmo tempo, reconstruir, lentamente, um caminho de pensamento; que é também uma busca por um eu e um outro, sem o qual deixamos de ser homens. "Pensar", diz o Primo, conserva viva uma sensibilidade que é fonte da dor. É esta dor que nos põem em marcha, que nos ajuda a desvelar um sistema inteiro de aniquilamento, que nos apresenta as sementes de vida e de morte (Raymond Williams), nos dando uma medida do nosso futuro. Sem dor não há pensamento, sem pensamento não há vida. Mas atenção. Tente ler dor, pensamento, vida não como um conjunto de palavras gastas e conhecidas, mas como algo ainda não refletido, não pensado, assim como sugere o eu-lírico: aquilo que não sabido ou pensado, no labirinto do peito vaga durante a noite ("À lua", Goethe). 


terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"Criança"

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre - e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,

que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo

que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo

que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.


Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Cecília Meireles, "Criança", in: Viagem (1939) - Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 246.


Crônica I



Campo de Extermínio
                                 Alex Robton





Escrevo esta crônica para contar que fui cativo e mendigo...



À Maíra,
Meu holding.



Sábado, 9 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio[1] 

Preâmbulo: "Sob a pele das palavras"

Não sou o primeiro nem o último a tentar expressar em palavras aquilo que sente, imagina, causa. Também não sou o único a sentir, no instante em que se põe a escrever, que está dizendo algo já falado, conhecido. Sigmund Freud foi um dos que chamou atenção para esta realidade, que se mistura com aquela vontade de se traduzir num texto, mesmo sendo isto uma tarefa difícil, haja vista que para "[...] alguns indivíduos é dado retirar sem maior esforço, do torvelinho dos próprios pensamentos, os conhecimentos mais profundos, aos quais temos de chegar em meio a torturante incerteza e incansável tatear" (O mal-estar na civilização, p. 105). Mas se é fato que alguns são mais perspicazes que os outros na hora da escrita, é realidade também que há pessoas, milhares delas, que também se arriscam no papel ou no editor de texto mesmo sabendo que as palavras cansam e não alcançam; que é preciso dizer muitas para dizer uma só (A duração do dia, Adélia Prado). Não sei o que minhas palavras vão alcançar, não sei se serão "verdadeiras", sei que elas existem e são "sinceras" (Inspirado em Wilfred Ruprecht Bion).

Dito isso, inicia-se, hoje, a crônica "Campo de extermínio", de Alex Robton, inspirada no relato de Margaret Little (Ansiedades psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott, Ed. Imago, 1992), no livro de Christophe Dejours (A banalização da injustiça social, Ed. FGV, 2011) e em minha análise. É um texto ficcional, não uma confissão, e estará dividido em três partes mediadas por um poema de Cecília Meireles, pois em sua obra (há anos) colho os conselhos, a baliza, o turno, a direção, em minha "noite escura".

Domingo, 10 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 1 [a]


Alex Robton foi gerado e nasceu num campo de extermínio, quando o totalitarismo já não era mais uma realidade na Europa. Mas, ali, onde ele fora gestado, um campo de extermínio - intitulado assim por se tratar de um lugar onde a vida está sob ameaça - estava se formando e levaria décadas para ser revisitado.
Num bairro pequeno burguês de sua cidade natal, localizada na região oeste do Estado São Paulo, ele fora gerado em meados de fevereiro de 1978, há 34 anos atrás. Seus pais, que já se conheciam há algum tempo, pareciam ter planejado aquela criança que acabava de ser concebida, entretanto, apesar da intimidade do casal, nenhuma intimidade havia com aquele embrião que acabava de se formar. Isso me fez lembrar o que ouvi pouco tempo atrás sobre as parturientes serem capazes de descrever o exato momento em que ficaram grávidas, muitas delas logo após consumar o ato sexual. Contudo, esse não era o caso da mãe de Alex Robton. Nem ela nem o pai não tinham notado até aquele momento, nem 9 meses, nem 10, 11, 20 anos depois, que ele já existia. Conhecendo Alex, como eu conheço, eu diria que ainda nem foi visto. Ele é como aquelas crianças cujos pais sabem da existência, que têm presença física, mas não são notadas. Existem como existe o sol, as nuvens, as estrelas, tem luz e forma próprias, embora não existam intimamente. Ora vivem apartadas, distantes, isoladas, ora seguem estranhas, fendidas, como estorvos e desvios. Lembram às vezes aquelas tardes quentes, secas e ensolaradas de verão, que fazem com que a gente anseie pelas tormentas que dissipam o calor, mesmo que tragam a destruição. Alex Robton era como uma nuvem, "vivendo de nunca chegar a ser" (Cecília Meireles, "Sugestão".). Pessoas assim lutam diariamente para existir, vivendo sob a ameaça do desaparecimento, do extermínio... mas, ainda não falemos dos processos de aniquilamento. Contemos um pouco mais da cidade, do bairro, das casas, de outras pessoas, daqueles que olharam e reconheceram Alex pela primeira vez. Contemos como Alex Robton e eu nos encontramos, como conheci sua história e decidi compartilhar aqui. Na verdade, ele e eu vamos contar o que aconteceu juntos, porque vivemos este campo de extermínio lado a lado e conseguimos sobreviver.
continua...


Segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 1 [b]

Na casa de Alex Robton ainda não existia o acolhimento que ele precisava. No vocabulário psicanalítico, "holding" seria uma palavra adequada para este apoio que Alex ansiava dentro do ventre de sua mãe, embora sentisse como se ele não existisse. Claro que algo existia entre eles, mãe e filho estavam conectados por um cordão, embora este vínculo não lhe parecesse muito complexo. Ele o via como algo vital, apesar de elementar, primário, apenas necessário para garantir o alimento da sobrevivência, porém, um cordão que o livrasse do medo, que o protegesse, este não existia. Contudo, mesmo sem esta aliança mais complexa, ele vingou, e muito bem: ali permaneceu durante 9 meses, crescendo, se desenvolvendo, sobrevivendo, nascendo. Por conta desta realidade, chegou até pensar que estava enganado, que sua mãe não era somente uma fonte de alimento e ele um "usurpador", afinal, se ela conseguiu gestá-lo, bem como lhe manter a vida durante e após o nascimento, então, talvez, o elo entre eles era muito mais complexo do que sentia, enquanto viveu naquele mundo aquoso. Começou a imaginar que, além do alimento, sua mãe poderia lhe dar algo que não tinha experimentado até então: o abraço ("holding"). Mas ele estava enganado. Não precisou muito tempo para perceber que de sua mãe e, depois, de seu pai - de ambos - viria apenas, e constantemente, o alimento que era necessário para que não acabássemos, enquanto que outras necessidades - sentidas e experimentadas na realidade pré-natal, num mundo onde tudo está oceanicamente misturado e esquecido - estas coisas ele não iria satisfazer tão cedo.
Mas voltemos ao momento em que Alex Robton nasceu, e nasceu de cesárea, porque foram intoleráveis as dores de parto. Nasceu junto com o dia e esperou ser abraçado, protegido, como havia sonhado. Mas isso não aconteceu. O elo frágil entre ele e sua mãe já não existia mais. Temeu que além do "pão", perdesse também a vida, mas descobriu estranhamente que um alimento lhe foi dado em meio à cesura, por isso respirou aliviado e percebeu que podia sobreviver naquele mundo desconhecido e limpo - a assepsia, o cheiro de limpeza do hospital, dos médicos, das enfermeiras é uma dura realidade que os bebês têm que lidar ao nascer. Daí o choro, as lágrimas de um lugar destinado a apagar rastros, mas também em prestar algum tipo de auxílio. Alex Robton tinha percebido as duas coisas. Sofreu com o apagamento dos rastros, no entanto, não pôde esconder que sentiu um ânimo e coragem para continuar, sobretudo, porque naquele mundo novo havia algo que lhe fazia bem, que lhe dava suporte ("träger"). Pensou que aquele bálsamo vinha de sua mãe, o que o fez imaginar que, talvez, um dia, quem sabe as coisas melhorassem, e ele e sua mãe se abraçariam como ele se sentia sendo abraçado por aquele lugar, envolto num tecido macio de algodão e ouvindo o choramingar de outros imberbes ainda incomodados com as mudanças. Alex não sentiu tanto incômodo assim: a limpeza, a maciez das roupas, o afago dos banhos e curativos, e o movimento de uma sala à outra em busca de alimento, quase todas investidas frustadas, tinham compensações que lhe faziam bem, embora lhe causassem medo também. Um medo que não sabia se era a primeira vez que sentia. Algo lhe dizia que não. A sensação de que fora daquele lugar a vida seria mais terrível ainda o forçava a pensar em novos nascimentos.
Voltou a sentir que iria morrer e estranhou este sentimento, pois não parecia novo também. Alex nascia mais uma vez. Nascia para um mundo sem mãe, sem seio, mas cercado de outros auxílios, de outras pessoas, de instituições, de tecidos, mamadeiras, novos cheiros, outros suportes. Havia mais elementos ainda em jogo, por isso decidiu não pensar na morte por um instante e decidiu começar a viver: Alex descobriu pela primeira vez o que era um infortúnio e a paciência. A vida começava e com ela sua guerra pela sobrevivência num mundo sem acolhimento.
continua...


Terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 1 [c]

Alex Robton ficou um pouco confuso ao sair do hospital. Houve um grande impacto ao ouvir e sentir a rua: seus ruídos e cheiros intensos causavam náusea e euforia ao mesmo tempo. Fazia sol naquele dia, com uma luz intensa de novembro, que fez com que sua mãe cuidadosamente protegesse seu rosto ainda pálido e frágil. Era estranho aquele cuidado, pois uma memória inicial lhe contava que aquele gesto materno de zelo e proteção não era, nem seria, algo constante, o que lhe causava uma ansiedade em tentar aproveitar. Apesar da novidade do afago, um desconforto se instalou no percurso entre escadarias do hospital e a rua. Era evidente para Alex que os braços que o carregavam eram trêmulos e instáveis.  Num primeiro momento não conseguiu distinguir quem era os donos daqueles braços, nem quem estava ao lado. Inclusive achou estranho, tanto que só quis comentar décadas depois, que a única voz masculina que conheceu naqueles dias era de um médico. Chegou a pensar que seu pai não era uma figura presente, mas se enganou. Alex Robton confundiu nos primeiros dias o pai com os outros convivas do hospital. E não era pra menos, o pai não tinha um nome, mas um apelido e também não se dirigia a Alex como filho. Mas existia um pai, assim como a morte.
Eu contava dos braços que transportavam Alex em direção a sua próxima pousada. Ele me disse que um colo tenso, rígido, desprotegido, precário lhe carregou naquela manhã e que não parecia um colo de mãe. Mas Alex sabia, sem saber, o que era colo de mãe. Algo lhe dizia que em algum momento naquele hospital, entre médicos, enfermeiras e visitas variadas (os convivas), uma mãe o acolheu, embora não lembrasse quem era, apesar dela ter deixado seu cheiro em minha roupa e na minha alma inscritos. Era um colo de mãe, mas não era sua mãe. Ao pensar nisso, voltou a sentir um pavor. Um pavor conhecido, mas que desta vez sabia de onde vinha: os três primeiros dias de vida no hospital, enquanto era levado do berçário ao quarto para ser alimentado, Alex sentia que não iria sobreviver. Faço um pequeno parêntese para contar que ouvi outra história das parturientes sobre alguns bebês e mamães terem dificuldades, logo nos primeiros encontros e desencontros, de estabelecerem um vínculo pelo seio, pelo toque das mãos etc. Da parte das mães, as reclamações se referem, principalmente, à sensibilidade e à dor naquela região, enquanto do lado dos bebês, Alex Robton me contou que o abraço era fundamental. Havendo um desencontro hediondo entre a boca do bebê com o seio materno, o apoio dos braços e o ressoar do coração materno eram como bálsamo naquela batalha pelo alimento. Alex não conheceu estas coisas no colo de sua mãe, nem a perseverança. Aquela mulher precária não daria seu alimento nem para ele, nem para o próximo filho que viria a ter, a irmã de Alex. Ambos são como cacos, "cacos para um vitral" (Adélia Prado), cujos núcleos foram sendo formados ora por acidente ora na batalha diária dos encontros e desencontros entre almas e formas variadas. Em Alex, há um núcleo, um self; de sua irmã, nada sei. Mas voltando à mãe de Alex Robton, não podemos dizer que ela não tentou alimentá-lo, não, isso aconteceu, mas como era preciso ter paciência com os cacos, com os retalhos (Adélia Prado), senão eles não tomam a forma inteira de um vitral, ela desistiu. Desanimou desta vez e de muitas outras, tanto que aquele pavor que Alex sentia ao ser transportado do hospital à rua não era somente uma memória do passado, mas também uma "memória do futuro" (W. Bion).

"Esse grande desânimo [...] minha mãe tinha-o todos os dias. Às vezes durava, às vezes desaparecia com a noite. Tive a sorte de ter uma mãe desesperada de um desespero tão puro que até mesmo a felicidade de viver, por mais viva que fosse, às vezes não podia afastá-lo totalmente. O que sempre vou ignorar são os fatos concretos que a levavam cada dia a nos abandonar à própria sorte" (Marguerite Duras, "O Amante", Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003, pp. 15-17).
continua...


                          “Noções”

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Cecília Meireles, "Noções", in: Viagem, op. cit., p, 271.



Quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 2 [a]

O desânimo da mãe de Alex Robton, com o passar do tempo, transformou-se num desespero, num pavor que o fazia pensar que havia entre eles um sentimento compartilhado. Mãe e filho estavam unidos pelo medo. Na verdade, pensar nisso, isto é, que sua mãe e ele tinham um sentimento em comum, trouxe algum alento para seu coração, pois era como se uma unidade se construísse, uma identidade do medo: "Em verdade temos medo [...] E fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios vadeamos [...] Nossos filhos tão felizes... Fiéis herdeiros do medo" (Carlos Drummond de Andrade, "O medo", in: A rosa do povo, São Paulo: Círculo do livro, 1945, pp. 21-22).
Mesmo ignorando os motivos que levavam a mãe de Alex a desanimar (Marguerite Duras), assim como ter o maior pavor, ele sentia que aqueles golpes dirigidos a ele não eram simplesmente falta de vínculo, de encontro, de "holding", mas faziam parte da "harmonia do medo" (Drummond). O leitor não sabe ainda, mas logo nos primeiros meses de vida, Alex adoeceu. E ficou doente na pele e depois nos pulmões. Sua mãe, de volta aos afazeres domésticos, e também ao pai alcoólatra, ao trabalho pouco remunerado numa loja da cidade, não sabia o que fazer com aquela criança em carne viva e com grandes dificuldades de dormir e respirar de dia e de noite. Na verdade, Alex me contou que nestes dias sentiu pela primeira vez a mão pesada de sua mãe em seu corpo. Não para afagá-lo, mas para machucá-lo, silenciá-lo. E não resolvia: dias e mais dias se passaram e, enquanto a doença de Alex não dava trégua, os açoites continuavam. Claro que sua mãe se arrependeu amargamente daquela atitude tão brutal, assim como se arrependeria de outros gestos e atitudes passadas e futuras, todas impensadas, embalada por um desânimo e um desespero que tinham suas razões, embora Alex ignorasse-as, pois não queria pensar que ele poderia ser a razão de tamanha revolta. Hesitou um pouco nisto, mas como a dúvida persistiu, acabou lembrando que meses antes de adoecer, sua mãe o deixou cair dos braços dentro do transporte público da cidade. Eis a "harmonia do medo".
Alex tinha seis meses e, num cruzamento de duas avenidas principais da cidade, o motorista do ônibus, para evitar uma colisão, precisou pisar nos freios muito forte. Como alguns passageiros estavam de pé, incluindo a mãe de Alex, a inércia involuntária daqueles que estavam sendo transportados foi se segurar o mais forte possível nos bancos e corrimões disponíveis. A mesma atitude teve a mãe de Alex, que se esquecia por um instante que carregava o filho em seu colo, e que acudir a si mesma e à criança era uma tarefa difícil para alguém tomada de desânimo e desespero constante. Acabou escolhendo o mais óbvio. Decidiu por si mesma, enquanto Alex percorria velozmente toda extensão do ônibus até sofrer uma colisão na frente do ônibus, junto ao banco do motorista. Não chorou, contaram os convivas para os passantes da rua. Na verdade, não havia motivo para isso. Estar vivo já era o bastante, importava agora esperar que o choro e os aplausos da multidão e de sua mãe cessassem para que a ajuda chegasse. Alex voltou ao hospital e estava bem.
Ele me contou este episódio, assim que nos conhecemos, há alguns anos atrás. Tentei consolá-lo naquele momento, bem como explicar que os pais causam, erram, falham e, certas vezes, até desistem dos filhos. Alex não entendia ainda a precariedade dos adultos, achava que todos aqueles eventos que tinha sofrido e outros que ainda não descrevi aqui - lembro que é preciso ter paciência com os cacos, com os retalhos (Adélia Prado) - eram responsabilidade sua, fruto da sua precariedade infantil. Sussurrei também em seu ouvido que, talvez, um dia, quando ele não estivesse mais numa terra estranha, mas no meio do seu povo, da sua família (Cecília Meireles), ele se depararia com estas limitações, deslizes, ataques. Devo dizer que estes dias já chegaram, inclusive Alex me contou, ainda ontem, que erra, erra muito com os seus, mas que cuida também, que não despreza o abraço, os gritos e as lágrimas compartilhadas, e que também gasta dias e noites em desenvolver e aprofundar uma aliança de pensamento, zelo e ética. E que se arrepende, mas não de um arrependimento superficial, tomado pelo desespero. Teme a falta de pensamento, de reflexão, de reconhecimento de si mesmo e do outro. 

"Deixa-me nascer de novo, nunca mais em terra estranha, mas no meio do meu povo, com meu céu, minha montanha, meu mar e minha família" (Cecília Meireles, "Desejo de Regresso", op.cit., pp. 471-472.)

continua...

  
Sábado, 16 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 2 [b]

O grotesco não é como a tragédia que pressupõe a miséria, a responsabilidade e a culpa secular (Wolfgang Kayser, O grotesco). No grotesco todos somos inocentes, pois colhemos os frutos das barbáries dos antepassados. Herdeiros das tragédias humanas acumuladas por gerações - da bomba atômica (W. Kayser) ao campo de extermínio, vale destacar -, o nosso livramento tem sido o riso nervoso por ter escapado de tamanha cilada e destruição. Um riso que beira, certas vezes, ao cômico, à zombaria, ao folgar, dando a impressão que estamos nas fronteiras da sátira. Entretanto, em matéria de estilo literário, a sátira não suportaria o peso (Erich Auerbach, Mimesis), o desânimo e o desespero do campo de extermínio. Nosso legado de mendigos e cativos, nossa amargura atravessada (Cecília Meireles, Mar absoluto..., op. cit.) seriam demasiadamente densos para a sátira. A forma do campo de extermínio é o grotesco e seu paradoxo.
Alex Robton nasceu e cresceu entre muros, entre convites, convivas, as seduções mais variadas e os golpes constantes dos olhares e cegueiras, dos mandos, prisões, dos afagos e punições. Mas como cativo e necessitado, não lembrava ter escolhido a prisão ou se aqueles grilhões tinham sido impostos. Este paradoxo não incomodava Alex, afinal, suas memórias de mendigo e cativo lhe diziam que mesmo com todas as portas abertas apontando a direção da saída, ele resolveu ficar. Mesmo depois do campo de extermínio entrar em ruínas, Alex Robton ainda volta pra lá algumas vezes. Estranha maneira de se sentir liberto e autônomo.
continua...



Segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 2 [c]

"Eu não saberia indicar uma necessidade vinda da infância que seja tão forte quanto a de proteção paterna" (Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 16). Alex Robton que viveu e cresceu num campo de extermínio parecia reconhecer que em lugares assim não haveria solução para o "desamparo infantil". Entretanto, era sabido também que, mesmo nos ambientes mais grotescos, muitas surpresas estão guardadas, muitos elementos estão escondidos, criando tanto o mistério das coisas desconhecidas quanto a expectativa de que mundos inteiros estão preservados, prontos para serem desvelados, despertados pelo "sonho": "[...] na vida psíquica nada que uma vez se formou pode acabar, de que tudo é preservado de alguma maneira e pode ser trazido novamente à luz de circunstâncias adequadas, mediante uma regressão de largo alcance [...]" (Sigmund Freud, op. cit., p. 12)
O campo de extermínio e sua "harmonia do medo" é uma destas realidades psíquicas intactas, que existem sob a "fachada" do pavor. Somente a "pesquisa psicanalítica" pode descobrir aspectos destas realidades, que uma vez descobertas trazem a alegria de um encontro, sempre parcial, mas cheio de nascimentos e frutos. Trata-se de um momento pronto a se cumprir, mas que vive sob a ameaça de nunca chegar a ser, a não ser que seu "mergulhador" insista, persista e tenha alguma companhia num dos recifes do imenso mundo oceânico. Devo dizer que Alex Robton hoje compartilha com o mergulhador de Schiller o mesmo sentimento de certo encontro: "[...] Alegre-se,/ Quem aí respira na luz rósea" (Schiller apud. Freud, op. cit., p. 17). Mas não foi sempre assim. Digo isso, considerando que se um bebê lactante, em circunstâncias normais "ainda não separa seu Eu de um mundo exterior" (Freud, op. cit., p. 10), daí requisitar sempre alguma ajuda gritando, chorando, um bebê gerado e nascido num campo de extermínio, logo cedo aprende a abandonar o grito e a não requisitar mais ajuda, tendo também dificuldade de diferenciar o que é interior, pertencente ao Eu, e o que é exterior, originário do mundo (Cf. Freud, op. cit., p. 11). Esta dificuldade deve-se ao fato de que a violência sem trégua advinda de fora não reconhece, em nenhuma circunstância, seus cativos e necessitados, aprofundando o desamparo, aumentando a ansiedade e trazendo o sentimento de aniquilamento, sentido profundamente por aqueles que demoraram a ser acudidos, abraçados ("holding"). Se em sua gênese a forma do campo de extermínio é o grotesco, enquanto seu conteúdo é a harmonia do medo e seus processos de aniquilamento, seu termo é o reconhecimento de partes deste empreendimento e dos encontros vitais daqueles que sobreviveram.
Tentando "lançar mais longe o olhar" (Freud, op. cit.), sinto que muitas coisas anunciadas no início dessa jornada ainda não foram expostas: uma delas é como Alex Robton sobreviveu num mundo sem o "holding"; a outra é porque temos a impressão de que estamos num processo mnemônico de Alex Robton, dando a sensação de que estamos em contato com estados arcaicos e não com as instâncias do vivido, do aqui e do agora.
Vou tentar tatear uma resposta para a última questão, sugerindo que o estado de rememoração que Alex Robton nos faz submergir não é propriamente algo do passado, mas se trata do “mundo da vida”, daquilo que é sentido e ressentido todos os dias. Mas por que insistir em processos de gestação, nascimento e crescimento se o que está em questão é a vida adulta de Alex Robton? Talvez, porque o desejo de ser amparado, abraçado, protegido, livrado do mal, ter um pai e uma mãe capazes de saber as reais necessidades de uma criança, "Tudo isso é claramente infantil" (Freud, op. cit., p. 17) e necessário, eu acrescentaria. "'Sem 'construções auxiliares' não é possível"  (Theodor Fontane apud. Freud, op. cit., p. 18). E por falar em "construções auxiliares", lembro que Alex Robton tinha e tem seus próprios recursos e auxílios, daí ter conseguido sobreviver. Mas, isto é assunto para a próxima crônica.

"Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos." Goethe

continua...

"Desenho"

"Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.

Isso era num lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.
Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira."

Cecília Meireles, Desenho, op. cit., pp. 523-524.



Terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte final

Alex Robton não era órfão, nem criança solitária. Ele nasceu e cresceu cercado de gente, dos pais biológicos aos convivas, na verdade, uma multidão de gente orbitando minha criança envelhecida (lembro do "jovem envelhecido" de Roberto Bolaño, Noturno do Chile). Não existe num campo de extermínio relações humanas profundas, há somente desvios. As relações se constroem do reflexo dos encontros e desencontros dos arredores, dos contornos que as relações alheias gotejam sobre aqueles que vivem num "campo". Inclusive, foi por uma estranha capacidade de imitar, que alguns entre os convivas se permitiram em sua sincera, esquiva e superficial vida, ousar casos fortuitos de abraços ("holding"). Lembro do dia que Alex Robton soprou em minha alma que foi com um dos convivas do campo de extermínio que se estabeleceu uma aliança e também se construiu um auxílio complementar, uma espécie de “lia”, de almoxarifado onde minha criança envelhecida encontrava os elementos essenciais para sua sobrevivência. Esqueci de dizer que ao chegar ao campo de extermínio, numa daquelas manhãs de novembro, Alex soube identificar quem fora o braço forte que o sustentou nos primeiros dias de vida no hospital e deixou em sua roupa inscrita uma presença, um cheiro de mãe, mesmo não sendo de sua mãe. Naqueles primeiros dias no campo de extermínio surgiu um vínculo fundamental e que durante anos serviu de modelo para que Alex Robton criasse outros vínculos e relações, nem sempre saudáveis, embora necessárias, com os outros convivas e também com gente dos arredores. E enquanto puderam correr e socorrer um ao outro, a Srª. Robton e Alex assim o fizeram, embora ambos parecessem dizer a si mesmos que tudo naqueles dias, por mais intenso, sincero e amoroso que fosse, "era uma ausência que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se" (Cecília Meireles, "Elegia", op. cit., p. 591). E foi exatamente o que aconteceu. A Srª Robton deixou o campo de extermínio num dia ensolarado de outubro. Tinha se passado um pouco mais de duas décadas desde o primeiro encontro até o último dia em que puderam reconhecer um e outro. Foram anos de cumplicidade, entre uma criança envelhecida e uma jovem senhora de cabelos brancos, que tentava repousar seu corpo precário e efêmero debaixo de um pé de jabuticaba plantado em frente de um casebre de muros caiados. Alguém me disse, inclusive, que a Srª Robton não passava de outro conviva do campo de extermínio, leve, grotesca, certas vezes tão violenta e ausente como os outros. Mas isso não era novidade para Alex Robton. Sempre soube o quanto a Srª Robton era humana, cativa e mendiga, assim como ele. Mas havia uma diferença brutal naquela mulher, pois mesmo sendo precária e rígida, a Srª Robton foi minha cruz mais branda (penso em Adélia Prado, A duração do dia).
No dia em que ela partiu, Alex ficou em dúvida sobre qual deles "morreu mais", embora hoje saiba, sinceramente, quem descansa eternamente naquele túmulo. Demorou, na verdade, para que minha criança envelhecida percebesse que está mais viva do que nunca, que sobreviveu àqueles dias e hoje pode nos contar um pouco do seu campo de extermínio. Um lugar que minha memória de mendigo e cativo não me deixou lembrar durante muito tempo, apesar que algumas vezes a poeira daquelas ruínas, tão vivas e presentes, como os sítios históricos de Roma, subiam até minhas narinas (Cf. Freud, O mal-estar na civilização, op. cit., p. 13). É sincero quem disse que a fraqueza da memória dá força ao homem (B.Brecht), fazendo-o prosseguir em meio aos esquecimentos. Mas lembrar pode ser uma dádiva, mesmo quando ainda "estamos longe de dominar as peculiaridades da vida psíquica por meio da representação visual". (Freud, op. cit, p. 14). Este é meu desenlace e meu começo.

fim!





[1] Esta crônica é de autoria de Alexandro Henrique Paixão. Originalmente, ela foi publicada aos pedaços no "Rascunho" do blog: “Cabecinhaboademenino.blogspot.com.br”, de Alex Robton by A.H.P, 2013.