terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"Criança"

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre - e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,

que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo

que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo

que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.


Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.

Cecília Meireles, "Criança", in: Viagem (1939) - Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 246.


Crônica I



Campo de Extermínio
                                 Alex Robton





Escrevo esta crônica para contar que fui cativo e mendigo...



À Maíra,
Meu holding.



Sábado, 9 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio[1] 

Preâmbulo: "Sob a pele das palavras"

Não sou o primeiro nem o último a tentar expressar em palavras aquilo que sente, imagina, causa. Também não sou o único a sentir, no instante em que se põe a escrever, que está dizendo algo já falado, conhecido. Sigmund Freud foi um dos que chamou atenção para esta realidade, que se mistura com aquela vontade de se traduzir num texto, mesmo sendo isto uma tarefa difícil, haja vista que para "[...] alguns indivíduos é dado retirar sem maior esforço, do torvelinho dos próprios pensamentos, os conhecimentos mais profundos, aos quais temos de chegar em meio a torturante incerteza e incansável tatear" (O mal-estar na civilização, p. 105). Mas se é fato que alguns são mais perspicazes que os outros na hora da escrita, é realidade também que há pessoas, milhares delas, que também se arriscam no papel ou no editor de texto mesmo sabendo que as palavras cansam e não alcançam; que é preciso dizer muitas para dizer uma só (A duração do dia, Adélia Prado). Não sei o que minhas palavras vão alcançar, não sei se serão "verdadeiras", sei que elas existem e são "sinceras" (Inspirado em Wilfred Ruprecht Bion).

Dito isso, inicia-se, hoje, a crônica "Campo de extermínio", de Alex Robton, inspirada no relato de Margaret Little (Ansiedades psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott, Ed. Imago, 1992), no livro de Christophe Dejours (A banalização da injustiça social, Ed. FGV, 2011) e em minha análise. É um texto ficcional, não uma confissão, e estará dividido em três partes mediadas por um poema de Cecília Meireles, pois em sua obra (há anos) colho os conselhos, a baliza, o turno, a direção, em minha "noite escura".

Domingo, 10 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 1 [a]


Alex Robton foi gerado e nasceu num campo de extermínio, quando o totalitarismo já não era mais uma realidade na Europa. Mas, ali, onde ele fora gestado, um campo de extermínio - intitulado assim por se tratar de um lugar onde a vida está sob ameaça - estava se formando e levaria décadas para ser revisitado.
Num bairro pequeno burguês de sua cidade natal, localizada na região oeste do Estado São Paulo, ele fora gerado em meados de fevereiro de 1978, há 34 anos atrás. Seus pais, que já se conheciam há algum tempo, pareciam ter planejado aquela criança que acabava de ser concebida, entretanto, apesar da intimidade do casal, nenhuma intimidade havia com aquele embrião que acabava de se formar. Isso me fez lembrar o que ouvi pouco tempo atrás sobre as parturientes serem capazes de descrever o exato momento em que ficaram grávidas, muitas delas logo após consumar o ato sexual. Contudo, esse não era o caso da mãe de Alex Robton. Nem ela nem o pai não tinham notado até aquele momento, nem 9 meses, nem 10, 11, 20 anos depois, que ele já existia. Conhecendo Alex, como eu conheço, eu diria que ainda nem foi visto. Ele é como aquelas crianças cujos pais sabem da existência, que têm presença física, mas não são notadas. Existem como existe o sol, as nuvens, as estrelas, tem luz e forma próprias, embora não existam intimamente. Ora vivem apartadas, distantes, isoladas, ora seguem estranhas, fendidas, como estorvos e desvios. Lembram às vezes aquelas tardes quentes, secas e ensolaradas de verão, que fazem com que a gente anseie pelas tormentas que dissipam o calor, mesmo que tragam a destruição. Alex Robton era como uma nuvem, "vivendo de nunca chegar a ser" (Cecília Meireles, "Sugestão".). Pessoas assim lutam diariamente para existir, vivendo sob a ameaça do desaparecimento, do extermínio... mas, ainda não falemos dos processos de aniquilamento. Contemos um pouco mais da cidade, do bairro, das casas, de outras pessoas, daqueles que olharam e reconheceram Alex pela primeira vez. Contemos como Alex Robton e eu nos encontramos, como conheci sua história e decidi compartilhar aqui. Na verdade, ele e eu vamos contar o que aconteceu juntos, porque vivemos este campo de extermínio lado a lado e conseguimos sobreviver.
continua...


Segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 1 [b]

Na casa de Alex Robton ainda não existia o acolhimento que ele precisava. No vocabulário psicanalítico, "holding" seria uma palavra adequada para este apoio que Alex ansiava dentro do ventre de sua mãe, embora sentisse como se ele não existisse. Claro que algo existia entre eles, mãe e filho estavam conectados por um cordão, embora este vínculo não lhe parecesse muito complexo. Ele o via como algo vital, apesar de elementar, primário, apenas necessário para garantir o alimento da sobrevivência, porém, um cordão que o livrasse do medo, que o protegesse, este não existia. Contudo, mesmo sem esta aliança mais complexa, ele vingou, e muito bem: ali permaneceu durante 9 meses, crescendo, se desenvolvendo, sobrevivendo, nascendo. Por conta desta realidade, chegou até pensar que estava enganado, que sua mãe não era somente uma fonte de alimento e ele um "usurpador", afinal, se ela conseguiu gestá-lo, bem como lhe manter a vida durante e após o nascimento, então, talvez, o elo entre eles era muito mais complexo do que sentia, enquanto viveu naquele mundo aquoso. Começou a imaginar que, além do alimento, sua mãe poderia lhe dar algo que não tinha experimentado até então: o abraço ("holding"). Mas ele estava enganado. Não precisou muito tempo para perceber que de sua mãe e, depois, de seu pai - de ambos - viria apenas, e constantemente, o alimento que era necessário para que não acabássemos, enquanto que outras necessidades - sentidas e experimentadas na realidade pré-natal, num mundo onde tudo está oceanicamente misturado e esquecido - estas coisas ele não iria satisfazer tão cedo.
Mas voltemos ao momento em que Alex Robton nasceu, e nasceu de cesárea, porque foram intoleráveis as dores de parto. Nasceu junto com o dia e esperou ser abraçado, protegido, como havia sonhado. Mas isso não aconteceu. O elo frágil entre ele e sua mãe já não existia mais. Temeu que além do "pão", perdesse também a vida, mas descobriu estranhamente que um alimento lhe foi dado em meio à cesura, por isso respirou aliviado e percebeu que podia sobreviver naquele mundo desconhecido e limpo - a assepsia, o cheiro de limpeza do hospital, dos médicos, das enfermeiras é uma dura realidade que os bebês têm que lidar ao nascer. Daí o choro, as lágrimas de um lugar destinado a apagar rastros, mas também em prestar algum tipo de auxílio. Alex Robton tinha percebido as duas coisas. Sofreu com o apagamento dos rastros, no entanto, não pôde esconder que sentiu um ânimo e coragem para continuar, sobretudo, porque naquele mundo novo havia algo que lhe fazia bem, que lhe dava suporte ("träger"). Pensou que aquele bálsamo vinha de sua mãe, o que o fez imaginar que, talvez, um dia, quem sabe as coisas melhorassem, e ele e sua mãe se abraçariam como ele se sentia sendo abraçado por aquele lugar, envolto num tecido macio de algodão e ouvindo o choramingar de outros imberbes ainda incomodados com as mudanças. Alex não sentiu tanto incômodo assim: a limpeza, a maciez das roupas, o afago dos banhos e curativos, e o movimento de uma sala à outra em busca de alimento, quase todas investidas frustadas, tinham compensações que lhe faziam bem, embora lhe causassem medo também. Um medo que não sabia se era a primeira vez que sentia. Algo lhe dizia que não. A sensação de que fora daquele lugar a vida seria mais terrível ainda o forçava a pensar em novos nascimentos.
Voltou a sentir que iria morrer e estranhou este sentimento, pois não parecia novo também. Alex nascia mais uma vez. Nascia para um mundo sem mãe, sem seio, mas cercado de outros auxílios, de outras pessoas, de instituições, de tecidos, mamadeiras, novos cheiros, outros suportes. Havia mais elementos ainda em jogo, por isso decidiu não pensar na morte por um instante e decidiu começar a viver: Alex descobriu pela primeira vez o que era um infortúnio e a paciência. A vida começava e com ela sua guerra pela sobrevivência num mundo sem acolhimento.
continua...


Terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 1 [c]

Alex Robton ficou um pouco confuso ao sair do hospital. Houve um grande impacto ao ouvir e sentir a rua: seus ruídos e cheiros intensos causavam náusea e euforia ao mesmo tempo. Fazia sol naquele dia, com uma luz intensa de novembro, que fez com que sua mãe cuidadosamente protegesse seu rosto ainda pálido e frágil. Era estranho aquele cuidado, pois uma memória inicial lhe contava que aquele gesto materno de zelo e proteção não era, nem seria, algo constante, o que lhe causava uma ansiedade em tentar aproveitar. Apesar da novidade do afago, um desconforto se instalou no percurso entre escadarias do hospital e a rua. Era evidente para Alex que os braços que o carregavam eram trêmulos e instáveis.  Num primeiro momento não conseguiu distinguir quem era os donos daqueles braços, nem quem estava ao lado. Inclusive achou estranho, tanto que só quis comentar décadas depois, que a única voz masculina que conheceu naqueles dias era de um médico. Chegou a pensar que seu pai não era uma figura presente, mas se enganou. Alex Robton confundiu nos primeiros dias o pai com os outros convivas do hospital. E não era pra menos, o pai não tinha um nome, mas um apelido e também não se dirigia a Alex como filho. Mas existia um pai, assim como a morte.
Eu contava dos braços que transportavam Alex em direção a sua próxima pousada. Ele me disse que um colo tenso, rígido, desprotegido, precário lhe carregou naquela manhã e que não parecia um colo de mãe. Mas Alex sabia, sem saber, o que era colo de mãe. Algo lhe dizia que em algum momento naquele hospital, entre médicos, enfermeiras e visitas variadas (os convivas), uma mãe o acolheu, embora não lembrasse quem era, apesar dela ter deixado seu cheiro em minha roupa e na minha alma inscritos. Era um colo de mãe, mas não era sua mãe. Ao pensar nisso, voltou a sentir um pavor. Um pavor conhecido, mas que desta vez sabia de onde vinha: os três primeiros dias de vida no hospital, enquanto era levado do berçário ao quarto para ser alimentado, Alex sentia que não iria sobreviver. Faço um pequeno parêntese para contar que ouvi outra história das parturientes sobre alguns bebês e mamães terem dificuldades, logo nos primeiros encontros e desencontros, de estabelecerem um vínculo pelo seio, pelo toque das mãos etc. Da parte das mães, as reclamações se referem, principalmente, à sensibilidade e à dor naquela região, enquanto do lado dos bebês, Alex Robton me contou que o abraço era fundamental. Havendo um desencontro hediondo entre a boca do bebê com o seio materno, o apoio dos braços e o ressoar do coração materno eram como bálsamo naquela batalha pelo alimento. Alex não conheceu estas coisas no colo de sua mãe, nem a perseverança. Aquela mulher precária não daria seu alimento nem para ele, nem para o próximo filho que viria a ter, a irmã de Alex. Ambos são como cacos, "cacos para um vitral" (Adélia Prado), cujos núcleos foram sendo formados ora por acidente ora na batalha diária dos encontros e desencontros entre almas e formas variadas. Em Alex, há um núcleo, um self; de sua irmã, nada sei. Mas voltando à mãe de Alex Robton, não podemos dizer que ela não tentou alimentá-lo, não, isso aconteceu, mas como era preciso ter paciência com os cacos, com os retalhos (Adélia Prado), senão eles não tomam a forma inteira de um vitral, ela desistiu. Desanimou desta vez e de muitas outras, tanto que aquele pavor que Alex sentia ao ser transportado do hospital à rua não era somente uma memória do passado, mas também uma "memória do futuro" (W. Bion).

"Esse grande desânimo [...] minha mãe tinha-o todos os dias. Às vezes durava, às vezes desaparecia com a noite. Tive a sorte de ter uma mãe desesperada de um desespero tão puro que até mesmo a felicidade de viver, por mais viva que fosse, às vezes não podia afastá-lo totalmente. O que sempre vou ignorar são os fatos concretos que a levavam cada dia a nos abandonar à própria sorte" (Marguerite Duras, "O Amante", Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003, pp. 15-17).
continua...


                          “Noções”

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

Cecília Meireles, "Noções", in: Viagem, op. cit., p, 271.



Quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 2 [a]

O desânimo da mãe de Alex Robton, com o passar do tempo, transformou-se num desespero, num pavor que o fazia pensar que havia entre eles um sentimento compartilhado. Mãe e filho estavam unidos pelo medo. Na verdade, pensar nisso, isto é, que sua mãe e ele tinham um sentimento em comum, trouxe algum alento para seu coração, pois era como se uma unidade se construísse, uma identidade do medo: "Em verdade temos medo [...] E fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios vadeamos [...] Nossos filhos tão felizes... Fiéis herdeiros do medo" (Carlos Drummond de Andrade, "O medo", in: A rosa do povo, São Paulo: Círculo do livro, 1945, pp. 21-22).
Mesmo ignorando os motivos que levavam a mãe de Alex a desanimar (Marguerite Duras), assim como ter o maior pavor, ele sentia que aqueles golpes dirigidos a ele não eram simplesmente falta de vínculo, de encontro, de "holding", mas faziam parte da "harmonia do medo" (Drummond). O leitor não sabe ainda, mas logo nos primeiros meses de vida, Alex adoeceu. E ficou doente na pele e depois nos pulmões. Sua mãe, de volta aos afazeres domésticos, e também ao pai alcoólatra, ao trabalho pouco remunerado numa loja da cidade, não sabia o que fazer com aquela criança em carne viva e com grandes dificuldades de dormir e respirar de dia e de noite. Na verdade, Alex me contou que nestes dias sentiu pela primeira vez a mão pesada de sua mãe em seu corpo. Não para afagá-lo, mas para machucá-lo, silenciá-lo. E não resolvia: dias e mais dias se passaram e, enquanto a doença de Alex não dava trégua, os açoites continuavam. Claro que sua mãe se arrependeu amargamente daquela atitude tão brutal, assim como se arrependeria de outros gestos e atitudes passadas e futuras, todas impensadas, embalada por um desânimo e um desespero que tinham suas razões, embora Alex ignorasse-as, pois não queria pensar que ele poderia ser a razão de tamanha revolta. Hesitou um pouco nisto, mas como a dúvida persistiu, acabou lembrando que meses antes de adoecer, sua mãe o deixou cair dos braços dentro do transporte público da cidade. Eis a "harmonia do medo".
Alex tinha seis meses e, num cruzamento de duas avenidas principais da cidade, o motorista do ônibus, para evitar uma colisão, precisou pisar nos freios muito forte. Como alguns passageiros estavam de pé, incluindo a mãe de Alex, a inércia involuntária daqueles que estavam sendo transportados foi se segurar o mais forte possível nos bancos e corrimões disponíveis. A mesma atitude teve a mãe de Alex, que se esquecia por um instante que carregava o filho em seu colo, e que acudir a si mesma e à criança era uma tarefa difícil para alguém tomada de desânimo e desespero constante. Acabou escolhendo o mais óbvio. Decidiu por si mesma, enquanto Alex percorria velozmente toda extensão do ônibus até sofrer uma colisão na frente do ônibus, junto ao banco do motorista. Não chorou, contaram os convivas para os passantes da rua. Na verdade, não havia motivo para isso. Estar vivo já era o bastante, importava agora esperar que o choro e os aplausos da multidão e de sua mãe cessassem para que a ajuda chegasse. Alex voltou ao hospital e estava bem.
Ele me contou este episódio, assim que nos conhecemos, há alguns anos atrás. Tentei consolá-lo naquele momento, bem como explicar que os pais causam, erram, falham e, certas vezes, até desistem dos filhos. Alex não entendia ainda a precariedade dos adultos, achava que todos aqueles eventos que tinha sofrido e outros que ainda não descrevi aqui - lembro que é preciso ter paciência com os cacos, com os retalhos (Adélia Prado) - eram responsabilidade sua, fruto da sua precariedade infantil. Sussurrei também em seu ouvido que, talvez, um dia, quando ele não estivesse mais numa terra estranha, mas no meio do seu povo, da sua família (Cecília Meireles), ele se depararia com estas limitações, deslizes, ataques. Devo dizer que estes dias já chegaram, inclusive Alex me contou, ainda ontem, que erra, erra muito com os seus, mas que cuida também, que não despreza o abraço, os gritos e as lágrimas compartilhadas, e que também gasta dias e noites em desenvolver e aprofundar uma aliança de pensamento, zelo e ética. E que se arrepende, mas não de um arrependimento superficial, tomado pelo desespero. Teme a falta de pensamento, de reflexão, de reconhecimento de si mesmo e do outro. 

"Deixa-me nascer de novo, nunca mais em terra estranha, mas no meio do meu povo, com meu céu, minha montanha, meu mar e minha família" (Cecília Meireles, "Desejo de Regresso", op.cit., pp. 471-472.)

continua...

  
Sábado, 16 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 2 [b]

O grotesco não é como a tragédia que pressupõe a miséria, a responsabilidade e a culpa secular (Wolfgang Kayser, O grotesco). No grotesco todos somos inocentes, pois colhemos os frutos das barbáries dos antepassados. Herdeiros das tragédias humanas acumuladas por gerações - da bomba atômica (W. Kayser) ao campo de extermínio, vale destacar -, o nosso livramento tem sido o riso nervoso por ter escapado de tamanha cilada e destruição. Um riso que beira, certas vezes, ao cômico, à zombaria, ao folgar, dando a impressão que estamos nas fronteiras da sátira. Entretanto, em matéria de estilo literário, a sátira não suportaria o peso (Erich Auerbach, Mimesis), o desânimo e o desespero do campo de extermínio. Nosso legado de mendigos e cativos, nossa amargura atravessada (Cecília Meireles, Mar absoluto..., op. cit.) seriam demasiadamente densos para a sátira. A forma do campo de extermínio é o grotesco e seu paradoxo.
Alex Robton nasceu e cresceu entre muros, entre convites, convivas, as seduções mais variadas e os golpes constantes dos olhares e cegueiras, dos mandos, prisões, dos afagos e punições. Mas como cativo e necessitado, não lembrava ter escolhido a prisão ou se aqueles grilhões tinham sido impostos. Este paradoxo não incomodava Alex, afinal, suas memórias de mendigo e cativo lhe diziam que mesmo com todas as portas abertas apontando a direção da saída, ele resolveu ficar. Mesmo depois do campo de extermínio entrar em ruínas, Alex Robton ainda volta pra lá algumas vezes. Estranha maneira de se sentir liberto e autônomo.
continua...



Segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte 2 [c]

"Eu não saberia indicar uma necessidade vinda da infância que seja tão forte quanto a de proteção paterna" (Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 16). Alex Robton que viveu e cresceu num campo de extermínio parecia reconhecer que em lugares assim não haveria solução para o "desamparo infantil". Entretanto, era sabido também que, mesmo nos ambientes mais grotescos, muitas surpresas estão guardadas, muitos elementos estão escondidos, criando tanto o mistério das coisas desconhecidas quanto a expectativa de que mundos inteiros estão preservados, prontos para serem desvelados, despertados pelo "sonho": "[...] na vida psíquica nada que uma vez se formou pode acabar, de que tudo é preservado de alguma maneira e pode ser trazido novamente à luz de circunstâncias adequadas, mediante uma regressão de largo alcance [...]" (Sigmund Freud, op. cit., p. 12)
O campo de extermínio e sua "harmonia do medo" é uma destas realidades psíquicas intactas, que existem sob a "fachada" do pavor. Somente a "pesquisa psicanalítica" pode descobrir aspectos destas realidades, que uma vez descobertas trazem a alegria de um encontro, sempre parcial, mas cheio de nascimentos e frutos. Trata-se de um momento pronto a se cumprir, mas que vive sob a ameaça de nunca chegar a ser, a não ser que seu "mergulhador" insista, persista e tenha alguma companhia num dos recifes do imenso mundo oceânico. Devo dizer que Alex Robton hoje compartilha com o mergulhador de Schiller o mesmo sentimento de certo encontro: "[...] Alegre-se,/ Quem aí respira na luz rósea" (Schiller apud. Freud, op. cit., p. 17). Mas não foi sempre assim. Digo isso, considerando que se um bebê lactante, em circunstâncias normais "ainda não separa seu Eu de um mundo exterior" (Freud, op. cit., p. 10), daí requisitar sempre alguma ajuda gritando, chorando, um bebê gerado e nascido num campo de extermínio, logo cedo aprende a abandonar o grito e a não requisitar mais ajuda, tendo também dificuldade de diferenciar o que é interior, pertencente ao Eu, e o que é exterior, originário do mundo (Cf. Freud, op. cit., p. 11). Esta dificuldade deve-se ao fato de que a violência sem trégua advinda de fora não reconhece, em nenhuma circunstância, seus cativos e necessitados, aprofundando o desamparo, aumentando a ansiedade e trazendo o sentimento de aniquilamento, sentido profundamente por aqueles que demoraram a ser acudidos, abraçados ("holding"). Se em sua gênese a forma do campo de extermínio é o grotesco, enquanto seu conteúdo é a harmonia do medo e seus processos de aniquilamento, seu termo é o reconhecimento de partes deste empreendimento e dos encontros vitais daqueles que sobreviveram.
Tentando "lançar mais longe o olhar" (Freud, op. cit.), sinto que muitas coisas anunciadas no início dessa jornada ainda não foram expostas: uma delas é como Alex Robton sobreviveu num mundo sem o "holding"; a outra é porque temos a impressão de que estamos num processo mnemônico de Alex Robton, dando a sensação de que estamos em contato com estados arcaicos e não com as instâncias do vivido, do aqui e do agora.
Vou tentar tatear uma resposta para a última questão, sugerindo que o estado de rememoração que Alex Robton nos faz submergir não é propriamente algo do passado, mas se trata do “mundo da vida”, daquilo que é sentido e ressentido todos os dias. Mas por que insistir em processos de gestação, nascimento e crescimento se o que está em questão é a vida adulta de Alex Robton? Talvez, porque o desejo de ser amparado, abraçado, protegido, livrado do mal, ter um pai e uma mãe capazes de saber as reais necessidades de uma criança, "Tudo isso é claramente infantil" (Freud, op. cit., p. 17) e necessário, eu acrescentaria. "'Sem 'construções auxiliares' não é possível"  (Theodor Fontane apud. Freud, op. cit., p. 18). E por falar em "construções auxiliares", lembro que Alex Robton tinha e tem seus próprios recursos e auxílios, daí ter conseguido sobreviver. Mas, isto é assunto para a próxima crônica.

"Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos." Goethe

continua...

"Desenho"

"Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.

Isso era num lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.
Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira."

Cecília Meireles, Desenho, op. cit., pp. 523-524.



Terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Campo de extermínio - parte final

Alex Robton não era órfão, nem criança solitária. Ele nasceu e cresceu cercado de gente, dos pais biológicos aos convivas, na verdade, uma multidão de gente orbitando minha criança envelhecida (lembro do "jovem envelhecido" de Roberto Bolaño, Noturno do Chile). Não existe num campo de extermínio relações humanas profundas, há somente desvios. As relações se constroem do reflexo dos encontros e desencontros dos arredores, dos contornos que as relações alheias gotejam sobre aqueles que vivem num "campo". Inclusive, foi por uma estranha capacidade de imitar, que alguns entre os convivas se permitiram em sua sincera, esquiva e superficial vida, ousar casos fortuitos de abraços ("holding"). Lembro do dia que Alex Robton soprou em minha alma que foi com um dos convivas do campo de extermínio que se estabeleceu uma aliança e também se construiu um auxílio complementar, uma espécie de “lia”, de almoxarifado onde minha criança envelhecida encontrava os elementos essenciais para sua sobrevivência. Esqueci de dizer que ao chegar ao campo de extermínio, numa daquelas manhãs de novembro, Alex soube identificar quem fora o braço forte que o sustentou nos primeiros dias de vida no hospital e deixou em sua roupa inscrita uma presença, um cheiro de mãe, mesmo não sendo de sua mãe. Naqueles primeiros dias no campo de extermínio surgiu um vínculo fundamental e que durante anos serviu de modelo para que Alex Robton criasse outros vínculos e relações, nem sempre saudáveis, embora necessárias, com os outros convivas e também com gente dos arredores. E enquanto puderam correr e socorrer um ao outro, a Srª. Robton e Alex assim o fizeram, embora ambos parecessem dizer a si mesmos que tudo naqueles dias, por mais intenso, sincero e amoroso que fosse, "era uma ausência que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se" (Cecília Meireles, "Elegia", op. cit., p. 591). E foi exatamente o que aconteceu. A Srª Robton deixou o campo de extermínio num dia ensolarado de outubro. Tinha se passado um pouco mais de duas décadas desde o primeiro encontro até o último dia em que puderam reconhecer um e outro. Foram anos de cumplicidade, entre uma criança envelhecida e uma jovem senhora de cabelos brancos, que tentava repousar seu corpo precário e efêmero debaixo de um pé de jabuticaba plantado em frente de um casebre de muros caiados. Alguém me disse, inclusive, que a Srª Robton não passava de outro conviva do campo de extermínio, leve, grotesca, certas vezes tão violenta e ausente como os outros. Mas isso não era novidade para Alex Robton. Sempre soube o quanto a Srª Robton era humana, cativa e mendiga, assim como ele. Mas havia uma diferença brutal naquela mulher, pois mesmo sendo precária e rígida, a Srª Robton foi minha cruz mais branda (penso em Adélia Prado, A duração do dia).
No dia em que ela partiu, Alex ficou em dúvida sobre qual deles "morreu mais", embora hoje saiba, sinceramente, quem descansa eternamente naquele túmulo. Demorou, na verdade, para que minha criança envelhecida percebesse que está mais viva do que nunca, que sobreviveu àqueles dias e hoje pode nos contar um pouco do seu campo de extermínio. Um lugar que minha memória de mendigo e cativo não me deixou lembrar durante muito tempo, apesar que algumas vezes a poeira daquelas ruínas, tão vivas e presentes, como os sítios históricos de Roma, subiam até minhas narinas (Cf. Freud, O mal-estar na civilização, op. cit., p. 13). É sincero quem disse que a fraqueza da memória dá força ao homem (B.Brecht), fazendo-o prosseguir em meio aos esquecimentos. Mas lembrar pode ser uma dádiva, mesmo quando ainda "estamos longe de dominar as peculiaridades da vida psíquica por meio da representação visual". (Freud, op. cit, p. 14). Este é meu desenlace e meu começo.

fim!





[1] Esta crônica é de autoria de Alexandro Henrique Paixão. Originalmente, ela foi publicada aos pedaços no "Rascunho" do blog: “Cabecinhaboademenino.blogspot.com.br”, de Alex Robton by A.H.P, 2013.