"Para que tentar?"
O conceito e/ou a noção de trabalho é o elemento central de compreensão
das relações humanas e das contradições sociais, logo, num mundo onde cada vez mais
o trabalho é selvagem, quando não inexistente, os horizontes acabam se fechando
diante da insatisfação do emprego, da insólita sensação de inutilidade ou da solidão
do desemprego, bem como da ausência de perspectivas e de superações. Trata-se
de uma atmosfera turva e cinzenta, que lembra algo que descreveu um dos
personagens de Shakespeare, no drama A
tempestade: “O inferno está vazio, todos os demônios estão soltos”. “O
inferno não existe, todos os demônios estão aqui”, transformando a vida na
sociedade humana num inferno, numa guerra econômica. O mundo pós 1970 é o mundo
da guerra econômica, do horror econômico, provocado pela ferocidade e
competitividade dos poucos empregos, de um lado, e pelo desemprego em massa e o
fantasma da inutilidade, de outro, conforme aponta Christophe Dejours, A banalização da injustiça social (1999)
e Richard Sennet, “O talento e o fantasma da inutilidade”, in: A cultura do capitalismo (2006). Tomo, portanto, como ponto de partida a pergunta de um dos personagens do filme "Tempos Modernos", de Chaplin, que se questiona "Para que tentar" depois de tantas derrotas no mundo do trabalho. Pensando nisso, vou discutir dois
aspectos particulares, que estão entrelaçados, dentro do mundo do trabalho no
modo de produção capitalista atual: o sofrimento e a falta de mobilização
social.
O mundo do trabalho foi e continua sendo uma questão difícil, complexa,
mas necessária, sobretudo porque hoje os homens, digo, aqueles que vivem a
selvageria do emprego e o desprezo do desemprego continuam tolerando o
sofrimento, a injustiça, a dor sem se mobilizar. A despeito dos últimos
processos de mobilização que tem surgido em todo Brasil e no mundo, que aponta
para uma aurora de novos acontecimentos e reações, uma mobilização urgente e
ausente é contra o sofrimento no mundo do trabalho. Na verdade, cabe a pergunta:
de onde veio esta tolerância que desenvolvemos em relação ao sofrimento? Qual é
o fundamento da tolerância social e falta de mobilização por parte dos homens em
relação às péssimas condições de emprego ou a ausência dele? A crise do emprego
tem sido vista como um fenômeno sistêmico, econômico, sobre o qual não se pode
fazer nada. O sofrimento no mundo do trabalho está dentro dos padrões
aceitáveis de normalidade, como se o liberalismo econômico dos últimos dias refratasse
a normatividade que é cara às formas totalitárias de existência. Afinal, o
comportamento social de todos em relação à exploração do trabalho ou a
gravidade do desemprego não geram mobilização, mas rejeição do quadro de
sofrimento. Pior, considera-se que este quadro faz parte de um sistema social
instituído e que a cada um de nós cabe seguirmos as regras, colaborarmos com
ela, afinal, só o “trabalho liberta” – esta frase grotesca estava numa placa na
entrada de Auschwitz. Responsabilidade excessiva e zelo com a própria causa é
tanto um engodo quanto ingredientes que o sistema nazista utilizou num caldo
que envenenou e exterminou milhares de pessoas.
A energia que produz a mobilização não é a esperança da felicidade, mas a
cólera contra o sofrimento e a injustiça social considerados intoleráveis. A
ação coletiva seria mais reação do que ação, reação contra o intolerável. Nesse
caso, haveria dois níveis de mobilização. Primeiro, uma mobilização subjetiva
individual, que implica a ação em busca de um desejo (paixão); e uma
mobilização coletiva, que implica uma reação ao sofrimento e a injustiça social,
que conduz ao engajamento.
É a falta de reações coletivas de mobilização que possibilita o aumento
progressivo do desemprego ou a selvageria do trabalho, quando ele existe, bem
como dos estragos psicológicos e sociais da sociedade contemporânea. E não
somente isso, o máximo que alcançamos são reações adversas, como atos de
violência, de vingança, ou então, de prostração, abatimento, depressão. Isso
não é mobilização, não é ação, é uma reação contra a violência.
Mas não deixa de ser um começo. A defesa é a mola de engajamento. É preciso
reagir, se defender, tudo isso para me engajar. Engajar numa luta não contra a
injustiça ou o mal, mas contra a banalização do mal. Contra a capacidade de
atenuar o sofrimento, desdramatizá-lo, o que nos torna co-autores da causa do
sofrimento.
O denominador comum de todas as pessoas é o trabalho e somente a partir
do trabalho, talvez, possamos compreender como a banalização do mal ou da
injustiça social se tornou possível. Por
banalizar o mal entenda a incapacidade de julgar e a vontade de agir
coletivamente contra a injustiça, isto é, um descrédito em relação ao
sofrimento no mundo do trabalho, portanto, na vida em sociedade.
Enfim, diante de uma sociedade permeada pela inutilidade e pela
banalização do mal, não havendo uma solução a curto prazo, só nos resta uma
construção humana bastante lenta, um processo que implica responsabilidades. Lembrando
que nosso poder e controle sobre o processo pode ser aumentado pelo
conhecimento de seu funcionamento. Na impossibilidade de contribuir para a ação,
a análise pode contribuir pelo menos para compreensão. E como diria Raymond
Williams, socialista e crítico literário inglês, aquilo que compreendemos,
podemos fazer.
Diante da insólita passividade coletiva frente ao mundo do trabalho, diante
desse quadro onde vigora a inutilidade, o problema não é a falta de uma utopia
social alternativa. O problema é o desenvolvimento de uma tolerância à
injustiça: zelo excessivo, alienação social, medo, inúmeras estratégias defensivas
para evitar o choque, processos de negação. Enfim, tudo isso, banaliza o mal,
porque não lhe dá a atenção e negação que lhe é devida, antes se conforma com
ele. A principal fonte de sofrimento no mundo é o trabalho, a falta dele, e a
garantia de felicidade que lhe é inerente. Então, por que virar as costas para
este problema estrutural? Sem reconhecimento do sofrimento não há mobilização e
um processo de ação. E ação é sempre uma tríade: práxis (ação); atividade
(trabalho) e paixão (sofrimento), porque suportar um sofrimento é experimentar
a compaixão. Todos estes elementos juntos são resultado da capacidade de pensar
e agir.
A banalidade do mal não consiste em uma psicopatologia, mas na
normalidade, ainda que esta normalidade seja sinistra e funesta. O único
caminho para nos ocuparmos com estes problemas é compreendendo, ativando nossa
capacidade de pensar sobre eles, reagindo, nos engajando e, portanto, nos
mobilizando em direção a uma ação coletiva. Contudo, como disse Isabel
Loureiro, uma vida talvez não seja o bastante para ver as transformações
sociais que estão sendo criadas pelas gerações de hoje, como os movimentos
anti-capitalistas, eco-socialistas, os movimentos de Ocupação etc. Na verdade, se não há uma solução a curto prazo, talvez
aquilo que o socialista grego Nikos Kazantzakis dizia pode ser um conselho
oportuno: não te dignes a perguntar se haverá vitória ou derrota, luta.