sábado, 15 de junho de 2013

Caos

Conheci o ódio e o abandono no mesmo dia. Eles vieram de lados distintos, por vias aparentemente desconhecidas. Mas, na verdade, o abandono vem sempre de dentro e o ódio de fora. A questão é que em ambos os casos, o perigo é eminente. Mas quem corre perigo? Quase sempre é o eu, aquele que foi construído em parceria com o outro. Não se trata de um eu puro, uno, homogêneo, mas de um eu com muitas faces, feições, diferentes vozes e representações. Porque para ser eu é preciso estar com o outro, relacionar-se, diferenciar-se, construir uma aliança de amor, que chamo de ética. É uma dádiva, que se transmuta em ameaça certas vezes, afinal, corre-se sempre o risco do outro desaparecer. Não o outro que se transfigura em eu, mas o outro que vive do lado de fora, com quem se estabelece uma parceria, um holding
Primo Levi chamou de Lourenço aquele que lhe restituiu a humanidade no campo de extermínio. Os gestos, as ações, a solidariedade laica daquele homem compromissado consigo mesmo e com o outro, despertou dentro do Primo o homem esmagado pela violência, pela dor, pelo caos "turvo e cinzento" do "Lager". 
Mas quem chega pode sempre partir. E assim acontecia com Lourenço, que se despedia do Primo todos os dias, assim como o sol faz à terra em milênios, embora sempre dando provas de voltar na próxima manhã. Mas quando a "roupa da noite encobre tudo" , e uma "vaga lua" (Cecília Meirelles) ilumina nossa escuridão, parece difícil acreditar que um soberano sol voltará a brilhar outra vez. Mas   Lourenço voltava e, assim como o sol, trazia luz àqueles que viam sombras. Sombras que se formam em meio à solidão, à despedida, ao entardecer. E nesta transição entre o dia e a noite, entre a presença e a ausência, mora o desespero, o caos.
Este "instante de terror" me visita quase sempre, pois a solidão é um sentimento constante. Mesmo em dias mais longos, com noites mais curtas, sinto sua presença, o sentimento da despedida, da experiência de que Lourenço vai me deixar mais uma vez, levando com ele toda minha humanidade. Esta é uma emoção verdadeira,  sentida com intensidade, embora a cada dia menos completa, total. Digo isso porque a solidão já não abrange tudo. Descubro a cada despedida, nos momentos em que tudo se torna caos, que continuo ainda vivo, mesmo em meio a uma dor terrível. Na verdade, tenho experimentado um despontar, um brilho de um rosto sorrindo mesmo em meio à angústia, à densidade da solidão. É indescritível a sensação de estar vivo, mesmo sabendo que o campo de extermínio pode ressoar a qualquer momento, mesmo nas situações mais livres de tensão e sofrimento. Existe um caos, assim como existe a vida, o eu e um outro. 
A última vez que Lourenço me deixou pensei que não iria sobreviver, pois fui transportado de novo para o "Lager", para sua verdade. Mas devo dizer que reencontrei meu atual caminho. Precisei me guiar pelas pistas internas que Lourenço plantou em minha alma antes de sua partida. Segui por elas, percebendo, aliás, que o que pareciam ser suas veredas, eram, na verdade, meus itinerários de busca e de luta pela vida, num passado e ainda no presente. Lourenço, na verdade, forneceu uma luz para me guiar por estas estradas da noite e das sombras, até o raiar do dia. Quando ele voltar terei muitas histórias para contar desta minha odisseia. Falarei destes dias, deste caos que se instalou depois da sua partida. Mas falarei também da vida, das descobertas de um eu e de um outro, que certas vezes me abandona, sem nunca me deixar.    





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