sábado, 22 de junho de 2013

"Pensar em outros mundos para transformar este..."




"Para que tentar?"

O conceito e/ou a noção de trabalho é o elemento central de compreensão das relações humanas e das contradições sociais, logo, num mundo onde cada vez mais o trabalho é selvagem, quando não inexistente, os horizontes acabam se fechando diante da insatisfação do emprego, da insólita sensação de inutilidade ou da solidão do desemprego, bem como da ausência de perspectivas e de superações. Trata-se de uma atmosfera turva e cinzenta, que lembra algo que descreveu um dos personagens de Shakespeare, no drama A tempestade: “O inferno está vazio, todos os demônios estão soltos”. “O inferno não existe, todos os demônios estão aqui”, transformando a vida na sociedade humana num inferno, numa guerra econômica. O mundo pós 1970 é o mundo da guerra econômica, do horror econômico, provocado pela ferocidade e competitividade dos poucos empregos, de um lado, e pelo desemprego em massa e o fantasma da inutilidade, de outro, conforme aponta Christophe Dejours, A banalização da injustiça social (1999) e Richard Sennet, “O talento e o fantasma da inutilidade”, in: A cultura do capitalismo (2006). Tomo, portanto, como ponto de partida a pergunta de um dos personagens do filme "Tempos Modernos", de Chaplin, que se questiona "Para que tentar" depois de tantas derrotas no mundo do trabalho. Pensando nisso, vou discutir dois aspectos particulares, que estão entrelaçados, dentro do mundo do trabalho no modo de produção capitalista atual: o sofrimento e a falta de mobilização social.
O mundo do trabalho foi e continua sendo uma questão difícil, complexa, mas necessária, sobretudo porque hoje os homens, digo, aqueles que vivem a selvageria do emprego e o desprezo do desemprego continuam tolerando o sofrimento, a injustiça, a dor sem se mobilizar. A despeito dos últimos processos de mobilização que tem surgido em todo Brasil e no mundo, que aponta para uma aurora de novos acontecimentos e reações, uma mobilização urgente e ausente é contra o sofrimento no mundo do trabalho. Na verdade, cabe a pergunta: de onde veio esta tolerância que desenvolvemos em relação ao sofrimento? Qual é o fundamento da tolerância social e falta de mobilização por parte dos homens em relação às péssimas condições de emprego ou a ausência dele? A crise do emprego tem sido vista como um fenômeno sistêmico, econômico, sobre o qual não se pode fazer nada. O sofrimento no mundo do trabalho está dentro dos padrões aceitáveis de normalidade, como se o liberalismo econômico dos últimos dias refratasse a normatividade que é cara às formas totalitárias de existência. Afinal, o comportamento social de todos em relação à exploração do trabalho ou a gravidade do desemprego não geram mobilização, mas rejeição do quadro de sofrimento. Pior, considera-se que este quadro faz parte de um sistema social instituído e que a cada um de nós cabe seguirmos as regras, colaborarmos com ela, afinal, só o “trabalho liberta” – esta frase grotesca estava numa placa na entrada de Auschwitz. Responsabilidade excessiva e zelo com a própria causa é tanto um engodo quanto ingredientes que o sistema nazista utilizou num caldo que envenenou e exterminou milhares de pessoas.
A energia que produz a mobilização não é a esperança da felicidade, mas a cólera contra o sofrimento e a injustiça social considerados intoleráveis. A ação coletiva seria mais reação do que ação, reação contra o intolerável. Nesse caso, haveria dois níveis de mobilização. Primeiro, uma mobilização subjetiva individual, que implica a ação em busca de um desejo (paixão); e uma mobilização coletiva, que implica uma reação ao sofrimento e a injustiça social, que conduz ao engajamento.
É a falta de reações coletivas de mobilização que possibilita o aumento progressivo do desemprego ou a selvageria do trabalho, quando ele existe, bem como dos estragos psicológicos e sociais da sociedade contemporânea. E não somente isso, o máximo que alcançamos são reações adversas, como atos de violência, de vingança, ou então, de prostração, abatimento, depressão. Isso não é mobilização, não é ação, é uma reação contra a violência.
Mas não deixa de ser um começo. A defesa é a mola de engajamento. É preciso reagir, se defender, tudo isso para me engajar. Engajar numa luta não contra a injustiça ou o mal, mas contra a banalização do mal. Contra a capacidade de atenuar o sofrimento, desdramatizá-lo, o que nos torna co-autores da causa do sofrimento. 
O denominador comum de todas as pessoas é o trabalho e somente a partir do trabalho, talvez, possamos compreender como a banalização do mal ou da injustiça social se tornou possível.  Por banalizar o mal entenda a incapacidade de julgar e a vontade de agir coletivamente contra a injustiça, isto é, um descrédito em relação ao sofrimento no mundo do trabalho, portanto, na vida em sociedade.
Enfim, diante de uma sociedade permeada pela inutilidade e pela banalização do mal, não havendo uma solução a curto prazo, só nos resta uma construção humana bastante lenta, um processo que implica responsabilidades. Lembrando que nosso poder e controle sobre o processo pode ser aumentado pelo conhecimento de seu funcionamento. Na impossibilidade de contribuir para a ação, a análise pode contribuir pelo menos para compreensão. E como diria Raymond Williams, socialista e crítico literário inglês, aquilo que compreendemos, podemos fazer. 
Diante da insólita passividade coletiva frente ao mundo do trabalho, diante desse quadro onde vigora a inutilidade, o problema não é a falta de uma utopia social alternativa. O problema é o desenvolvimento de uma tolerância à injustiça: zelo excessivo, alienação social, medo, inúmeras estratégias defensivas para evitar o choque, processos de negação. Enfim, tudo isso, banaliza o mal, porque não lhe dá a atenção e negação que lhe é devida, antes se conforma com ele. A principal fonte de sofrimento no mundo é o trabalho, a falta dele, e a garantia de felicidade que lhe é inerente. Então, por que virar as costas para este problema estrutural? Sem reconhecimento do sofrimento não há mobilização e um processo de ação. E ação é sempre uma tríade: práxis (ação); atividade (trabalho) e paixão (sofrimento), porque suportar um sofrimento é experimentar a compaixão. Todos estes elementos juntos são resultado da capacidade de pensar e agir.
A banalidade do mal não consiste em uma psicopatologia, mas na normalidade, ainda que esta normalidade seja sinistra e funesta. O único caminho para nos ocuparmos com estes problemas é compreendendo, ativando nossa capacidade de pensar sobre eles, reagindo, nos engajando e, portanto, nos mobilizando em direção a uma ação coletiva. Contudo, como disse Isabel Loureiro, uma vida talvez não seja o bastante para ver as transformações sociais que estão sendo criadas pelas gerações de hoje, como os movimentos anti-capitalistas, eco-socialistas, os movimentos de Ocupação etc. Na verdade, se não há uma solução a curto prazo, talvez aquilo que o socialista grego Nikos Kazantzakis dizia pode ser um conselho oportuno: não te dignes a perguntar se haverá vitória ou derrota, luta.



Um comentário:

  1. Que bom ver uma lufada de inconformidade com qualidade... lembrei-me do romance de Ricardo Lísias ao ler sobre o mundo do trabalho, "O livro dos mandarins". E fiquei curioso quanto ao livro do Dejours. Alex Robton não é brincadeira não...

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