domingo, 6 de dezembro de 2015

Gosto de Zona Cinzenta

Descobri que há noites na vida da gente que nunca passam. Não passam com o raiar do dia. Tamanha luz solar não tem alcance diante das fendas, dos vazios, das cesuras, do grande profundo das coisas que me habitam. Às vezes esse grande profundo se desloca e sobe até me alcançar. Seu gosto amargo é conhecido, mas não indigesto. É preciso remoê-lo, pois o gosto da noite, com pitadas da luz do dia que entram pela boca aberta, formam uma massa densa, flutuante, uma mistura de sombras e luzes em minha garganta. Esse refluxo é algo fosco, fluido, que me queima com sua mistura cinzenta.
Primo Levi tem algo a nos dizer sobre isso: "Estou à mesa com a família, com os amigos [...] um ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina [...] tudo se desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um na turvo e cinzento" [A trégua].
Primo Levi foi um dos primeiros homens que conheci que foi servido à mesa pela sua própria zona cinzenta. Curiosamente, esse recheio não vem de fora, mas de dentro. É um alimento necessário, uma reserva do ser para aqueles que precisam de energia para se manter vivos. Primo mastiga seu próprio caos com dentes afiados de dor e pensamento. Não se trata de nenhum ritual de auto-canibalismo, mas da necessidade de remoer, mastigar, dentar, triturar, digerir a própria carne do sofrimento.  

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